A COVID-19 como doença ocupacional.

A COVID-19 como doença ocupacional.    RESUMO: O objetivo deste artigo foi trazer o atual cenário e as possibilidades fáticas e jurídicas decorrentes da decisão do Supremo Tribunal Federal que suspendeu a eficácia do art. 29 da Medida Provisória 927. Palavras chave: Coronavírus. Covid-19. Doença ocupacional. Nexo de causalidade. Ônus da prova. ABSTRACT: The purpose […]

A COVID-19 como doença ocupacional. 

 

RESUMO: O objetivo deste artigo foi trazer o atual cenário e as possibilidades fáticas e jurídicas decorrentes da decisão do Supremo Tribunal Federal que suspendeu a eficácia do art. 29 da Medida Provisória 927.

Palavras chave: Coronavírus. Covid-19. Doença ocupacional. Nexo de causalidade. Ônus da prova.

ABSTRACT: The purpose of this article was to bring up the current scenario and the factual and legal possibilities resulting from the decision of the Supreme Federal Court that suspended the effectiveness of art. 29 of Provisional Measure 927.

Keywords: Coronavirus. Covid-19. Occupational disease. Causation. Burden of proof.

1. INTRODUÇÃO

Recentemente, os meios de comunicação divulgaram que a Covid-19 teria sido considerada como doença ocupacional pelo Supremo Tribunal Federal ? STF. Mas não é bem assim. Explico por que.

A Medida Provisória 927, de 22/03/20, que trouxe algumas opções para empregados e empregadores enfrentarem esse período de pandemia, também consignou expressamente que a contaminação pelo Coronavírus não seria considerada doença ocupacional, exceto se o empregado comprovasse o nexo de causalidade. Dispõe o art. 29 que ?Os casos de contaminação pelo coronavírus (COVID-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.?

Note que a Covid-19 já poderia ser considerada como doença ocupacional, mas era ônus do empregado comprovar a relação entre a contaminação e o trabalho por ele desempenhado.

A redação desse artigo foi duramente criticada porque transferiu para o empregado a obrigação de comprovar que teria se contaminado em decorrência do trabalho.

Para Maria Cibele Valença, a corte suprema entendeu que, pelo fato de ser extremamente difícil comprovar o momento da contaminação, esse ônus não poderia ser imposto ao empregado, por ser muito oneroso e, às vezes, impossível. Mas vale ressaltar que tal também é extremamente difícil tal prova para o empregador

Foram ajuizadas sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade ? ADIs questionando, dentre outros, esse dispositivo da medida provisória, por violação ao art. 7º, XXVIII, da CRFB/88 que trata da contratação de seguro contra acidentes, pelo empregador, além de indenização nos casos de dolo ou culpa e ao art. 7º. XXII, também da Carta Magna, que prevê como direito do trabalhador, a ?redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança?

O relator dessas ADIs, Ministro Marco Aurélio, indeferiu as liminares pretendidas pelos autores, mantendo a MP 927 válida em sua totalidade.

Mas, na sessão telepresencial para referendar a decisão do relator, em 29/04/20, o pleno do STF, por maioria, deliberou por suspender a eficácia do art. 29 (acima citado) e do art. 31, que suspendia a atuação fiscalizatória e repressiva dos auditores fiscais do trabalho, que poderiam multar as empresas apenas nas hipóteses de falta de registro do empregado, situação de risco iminente, acidente de trabalho fatal, trabalho infantil e trabalho em condições análogas à de escravo.

2. A COVID-19 COMO DOENÇA OCUPACIONAL

Pois bem. Qual é o cenário após a decisão do STF? Doravante, a Covid-19 será considerada doença ocupacional?

A resposta é negativa. Não, a suprema corte não declarou que a contaminação pelo Coronavírus será, automaticamente, considerada doença ocupacional.

O que fez o STF, repita-se, foi suspender a eficácia do art. 29 da MP 927. Isso implica dizer que a contaminação pelo vírus pode ser considerada doença ocupacional e que o ônus da prova não será do empregado.

Veja que o fato de ter sido suspensa a eficácia do artigo acima não permite a afirmação, como os meios de comunicação tem feito, de que agora a contaminação seria doença ocupacional equiparada a acidente de trabalho.

Acredita-se, humildemente, que caminhou muito bem o STF, já que em alguns casos, será possível o enquadramento da doença como ocupacional e transferir esse ônus de provar ao empregado seria quase como uma prova diabólica, ou prova impossível, ainda mais em se tratando de uma transmissão comunitária. Além disso, a previsão legal poderia incentivar os empregadores a descumprir as normas de saúde e segurança do trabalho.

Nesse cenário, a constatação do Covid-19 como doença ocupacional deverá ser avaliada casuisticamente. Como bem ressaltaram Antônio Cleto Gomes e Nicya Pita Lessa, a ?legislação que trata do tema e estabelece uma série de requisitos para caracterização de doença como ocupacional continua vigente e será a norma balizadora para a análise desses casos.?

Obviamente que, para os profissionais de saúde, por exemplo, a possibilidade de contaminação é altíssima e, nessa hipótese, será mais fácil a constatação da doença ocupacional.

Nesse sentido, vale citar recente decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 828.040- DF, adotada no dia 12/3/2020, que asseverou haver, à luz da Constituição, responsabilidade objetiva do empregador por danos decorrentes de doenças ocupacionais nos casos de exposição a riscos inerentes à atividade executada pelo trabalhador. A lógica, nesses casos, é a mesma estampada no art. 927, parágrafo único, do Código Civil.

Carolina Tupinambá sustenta, por isso, que em se tratando de atividades com alto risco de contágio, a responsabilidade do empregador será objetiva.

Já para um caminhoneiro a possibilidade de contágio seria de risco mediano. Para aqueles que estão trabalhando em home office ou teletrabalho, o risco de contaminação será menor ainda.

Em todas as situações acima citadas, o empregador pode comprovar que adotou todas as medidas de proteção à saúde e segurança no trabalho, a fim de afastar o nexo causal e, consequentemente, a doença ocupacional.

Por exemplo, suponhamos que um hospital espalhou avisos por todo o local de trabalho sobre a necessidade de higienização das mãos, da utilização do álcool em gel, do distanciamento e do uso de máscaras, forneceu todos os equipamentos de proteção individual – EPIS necessários, fez a substituição periódica, fiscalizou a sua adequada utilização e advertiu os empregados desobedientes. Nesse caso, se houver alguma contaminação, pode a empregadora comprovar que seu empregado, fora do horário de trabalho, esteve em aglomerações ou foi contaminado por algum familiar, já que no local de trabalho, todo o protocolo de saúde foi respeitado e lá, portanto, a contaminação não teria ocorrido.

Já no caso de um trabalhador que não está na sede da empresa, a lógica se inverte. Será dele o ônus de provar que, embora não esteja no estabelecimento do empregador, sua contaminação se deu em virtude do trabalho, quando um colega de trabalho foi lhe entregar algum objeto ou documento, por exemplo.

Note que o enquadramento como doença ocupacional dependerá de cada caso, não sendo possível qualquer generalização nesse sentido. Noutro falar, ?não há uma presunção absoluta de estabelecimento de nexo causal com labor em razão de pandemia. Pelo contrário, existe uma exclusão legal, prevista nos casos de doenças endêmicas, conforme preconiza o art. 20, ?d? da Lei 8.213/1991.? (GOMES, LESSA, 2020)

Na Nota Técnica Conjunta nº 04/2020, o Ministério Público do Trabalho – MPT citou a Occupational Safety and Health Administration – OSHA, que estabeleceu uma classificação de risco para os casos de contaminação:

a) Risco muito alto de exposição: aqueles com alta possibilidade de contaminação, tais como: médicos, enfermeiras, dentistas, paramédicos, técnicos de enfermagem, profissionais que realizam exames ou coletam amostras e aqueles que realizam autopsias;

b) Risco alto de exposição: profissionais que entram em contato com casos confirmados ou suspeitos de COVID19, tais como: fornecedores de insumos de saúde, e profissionais de apoio que entrem nos quartos ou ambientes onde estejam ou estiveram presentes pacientes confirmados ou suspeitos, profissionais que realizam o transporte de pacientes, como ambulâncias, que trabalham no preparo dos corpos para cremação ou enterro;

c) Risco mediano de exposição: profissionais que demandam o contato próximo (menos de 2 metros) com pessoas que podem estar infectadas com o novo coronavírus (SARS-coV-2), mas que não são considerados casos suspeitos ou confirmados; que tem contato com viajantes que podem ter retornado de regiões de transmissão da doença; que tem contato com o público em geral (escolas, ambientes de grande concentração de pessoas, grandes lojas de comércio varejista); (iv)

d) Risco baixo de exposição: aqueles que não requerem contato com casos suspeitos, reconhecidos ou que poderiam vir a contrair o vírus, que não tem contato (a menos de 2 metros) com o público; profissionais com contato mínimo com o público em geral e outros trabalhadores.

Importante destacar que o nexo técnico epidemiológico será verificado pelo médico perito no INSS (art. 21-A da Lei nº 8.213/91) e, caso o empregador discorde, pode recorrer ao órgão competente para afastar o liame causal.

Nada impede que, mesmo após o recurso, caso o INSS considere a contaminação como sendo doença ocupacional, o empregador discuta o nexo causal na Justiça do Trabalho e lá produza todas as provas da regularidade de sua conduta e da possibilidade de contaminação em outras ocasiões, em atenção ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CRFB).

No processo judicial, a parte interessada poderá rediscutir toda a matéria e, na fase instrutória da demanda, será designado perito médico de confiança do julgador que deverá atentar para o que dispõe a Resolução n. 1.488/98, do Conselho Federal de Medicina, em especial no art. 2º, além da Resolução INSS/DC/nº 010, de 23/12/99, bem como o Decreto nº 3.048/99, como bem ressaltou Rafael Ponciano Costa. Pode ocorrer, ao final, que o provimento jurisdicional seja diverso da decisão adotada pelo INSS.

Até porque, como já dito, os casos de endemia não são considerados acidente de trabalho, consoante disposição do art. 20, § 1º, ?d? da Lei nº 8.213/91.

Sendo a Covid-19 uma doença pandêmica (de abrangência mundial), acredita-se que, com muito mais razão, se aplica a regra dos casos de doença endêmica (de alcance local).

Aliás, pode-se cogitar que a redação do artigo 29 da MP 927 tenha sido inspirada no artigo 20, § 1º, ?d?, da Lei nº 8.213/91.

Assim, independente do resultado do julgamento do mérito das ADIs, acredita-se que o empregado ainda terá de comprovar que a contaminação decorreu do seu trabalho, por se tratar de doença pandêmica, com base no preceito citado no parágrafo anterior.

Outros suscitarão tratar de responsabilidade objetiva do empregador, cabendo a ele provar as hipóteses de rompimento do nexo de causalidade, como a culpa exclusiva do empregado (vítima), por exemplo.

Segundo Ricardo Calcini:

?comprovada a não observância das regras de segurança, por conduta negligente da empresa, colocando em risco a integridade física dos seus empregados, há nexo causal apto a imputar a responsabilidade empresa pela ocorrência da doença ocupacional. Contudo, se na particularidade do caso, por exemplo, ficar evidenciada a culpa exclusiva da vítima por ter contraído Covid-19, naturalmente rompe-se o nexo de causalidade, afastando o coronavírus como doença equiparada a acidente do trabalho.?

3. CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO RECONHECIMENTO DA COVID-19 COMO DOENÇA OCUPACIONAL

Sendo reconhecido o caráter ocupacional da Covid-19, diversas consequências podem ser listadas, muitas delas citadas pela professora Carolina Tupinambá, quais sejam:

  1. A estabilidade provisória no emprego pelo prazo de 12 meses após a cessação do auxílio doença, comum ou acidentário, conforme art. 118 da Lei n º 8.213/91 e súmula 378 do TST;
  2. A emissão da Comunicação de Acidente de Trabalho – CAT, nos termos do art. 22, sob pena de multa: Acredita-se que, para as empresas com atividades de risco muito alto de contaminação, a emissão de referido documento é essencial;
  3. O pagamento de FGTS durante todo o período de afastamento, nos termos do art. 15, § 5º, da Lei nº 8.036/90;
  4. A possibilidade de ocorrência dos crimes de Lesão Corporal (art. 129 do Código Penal), Perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132 do CP), até mesmo, de Homicídio (art. 121 do CP);
  5. O aumento da alíquota do Fator Acidentário de Prevenção ? FAP: pela metodologia do FAP, as empresas que registrarem maior número de acidentes ou doenças ocupacionais pagam mais o Risco Ambiental do Trabalho – RAT. Por outro lado, existe uma bonificação das empresas que registram menos acidentes e doenças ocupacionais, sendo possível reduzir até pela metade a tributação.
  6. Ação Regressiva do INSS em face do empregador causador do dano ? art. 120 e 121 da Lei nº 8.213/91;
  7. Ressarcimento de despesas médicas: como, por exemplo, o próprio exame para verificação do contágio da Covid-19;
  8. Pensão vitalícia aos familiares no caso de morte.

4. CONCLUSÃO

Vale ressaltar que a doença é nova e desconhecida até mesmo para a classe médica. Não se sabe ao certo o período de encubação e manifestação da doença, possibilitando aferir se a contaminação ocorreu ou não em virtude do trabalho. Não sabemos se após a contaminação e a manifestação dos sintomas, o indivíduo que já foi contaminado poderá ser reinfectado. Há relatos de que, até mesmo o isolamento social, pode não ser tão eficaz como se almeja.

Inúmeras são as dúvidas e incertezas e, por isso, acredita-se que será difícil, tanto para o empregado, quanto para o empregador, comprovar ou refutar o nexo causal, até porque a transmissão tem sido comunitária (portaria nº 454, de 20/03/20) o que impede a ciência de quem seria o transmissor.

Como bem ressaltou Lidiane Sant’Ana Simões, a temática ainda é nova e por isso muitas dúvidas não foram respondidas pela Justiça do Trabalho. O fornecimento de EPI adequado neutraliza a contaminação? Se no exercício da função o empregado não é exposto ao risco de contágio e, ainda assim, for contaminado, ainda configura doença ocupacional? As respostas ainda estão por vir.

Fatalmente, muitas discussões desaguarão no Judiciário Trabalhista que, na medida do possível, entregará a tutela jurisdicional mais justa, rápida e efetiva para as partes.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Presidência da República. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em: 28/05/20.

BRASIL. Presidência da República. Medida Provisória n. 927 de 22 de março de 2020. Dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv927.htm Acesso em: 23/03/2020.

BALAZEIRO, Alberto Bastos. Ministério Público do Trabalho — Procuradoria Geral do Trabalho – Nota Técnica Conjunta 04/2020. Disponível em https://mpt.mp.br/pgt/noticias/nota-tecnica-no-4-coronavirus.pdf. Acesso em 29/05/20.

CALCINI, Ricardo. As doenças ocupacionais em tempos de pandemia de Covid-19. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2020-mai-07/pratica-trabalhista-doencas-ocupacionais-tempos-pandemia. Acesso em 26/05/20.

COSTA, Rafael Ponciano. A perícia médica para caracterização do coronavirus como doença profissional. Disponível em:https://poncianocostaadvocacia.jusbrasil.com.br/artigos/852881495/a-pericia-medica-para-caracterizacao-do-coronavirus-como-doenca-profissional?ref=feedAcesso em 30/05/20.

GOMES, Antônio Cleto. LESSA, Nicya Pita. O STF estabeleceu que a covid-19 é acidente de trabalho? Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/327024/o-stf-estabeleceu-que-a-covid-19-e-acidente-de-trabalho. Acesso em 26/05/20

GRANATO, Luiza. Covid-19 pode ser acidente de trabalho? Advogado explica decisão do STF. Disponível em https://exame.com/carreira/covid-19-pode-ser-acidente-de-trabalho-advogado-explica-decisao-do-stf/. Acesso em 26/05/20.

SIMÕES, Lidiane Sant’Ana. Infecção por covid-19 pode ser considerada doença ocupacional?. Disponível emhttps://www.migalhas.com.br/depeso/326897/infeccao-por-covid-19-pode-ser-considerada-doenca-ocupacional. Acesso em 30/05/20.

TUPINAMBÁ, Carolina. É verdade que a Covid-19 é considerada doença ocupacional? Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/e-verdade-que-a-covid-19-e-considerada-doenca-ocupacional-22052020. Acesso em 30/05/20.

VALENÇA, Maria Cibele. De fato, o STF entendeu que a Covid-19 é doença ocupacional? Qual a extensão da decisão? O que as empresas devem fazer? Disponível emhttps://www.migalhas.com.br/depeso/326401/de-fato-o-stf-entendeu-que-a-covid-19-e-doenca-ocupacional-qual-a-extensao-da-decisao-o-que-as-empresas-devem-fazer. Acesso em 30/05/20.

alvaro@appa.com.br

Álvaro Augusto Lauff Machado